1. |
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Dessa dor só te lembras
nas alturas em que inventas
vãos motivos para sofrer.
Essa dor não a trazes.
Essa dor só a usas quando
queres fingir que não sabes rir.
Essa dor não existe.
Essa dor nunca sentiste.
Essa dor não a tens.
(Tu isso sabes, não sabes?)
Essa dor não te serve.
Essa dor só a vestes quando
já não tens mais nada a dizer.
Essa dor dá-te jeito.
Essa dor é perfeita para
termos todos pena de ti.
Essa dor não é nada.
Essa dor só acaba
com o que ainda resta de ti.
(Mas isso sabes, não sabes?)
Porque é que dela precisas?
Será mesmo que acreditas
que o que não foi é aquilo que hoje te rói?
Não te maces, não te canses... Não te mates,
pois outros homens virão
fazer de ti o que eles são.
Essa dor não é tua,
acho que a achaste na rua,
ingrato resto de alguém.
Essa dor não é nada.
Essa dor só acaba
com o que ainda resta de ti.
Essa dor não existe.
Essa dor nunca sentiste,
por isso sabe-te bem.
(Isso tu sabes que eu sei.)
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2. |
Mais um belo dia
03:29
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Mais um belo dia, não vês?
Uma vez mais não vês.
Não te chega não ver,
ainda queres esconder-nos o que nunca
é de mais para quem de trás
não traz paz decente —
e estamos todos inocentes.
Mas um belo dia
alguém vai ter de pagar, não crês?
Vê se vês outra solução;
eu, por mim,
sabes que viso sempre a amizade
e a compreensão.
Eu não estou cá por querer.
Por mim, nem sequer estava aqui.
Mas esta é a minha função:
não deixar que te esqueças de ti.
Crês ao querer crer
ser o que não és?
Querer crer não é crer, não vês,
querer crer é fugir;
é fingir.
Luta, tens de lutar
ou é o medo de morrer que te vai matar.
Nunca pudeste? Nunca nasceste.
Como fizeste para crescer?
Já houve um dia em que tudo dava certo,
se fazia sol ou se chovia era-me igual.
Mas o dia passou e explicou-me o amor, a amizade...
Na realidade, o verão acabou
e o que sobrou fui eu.
Eu não pedi pra nascer.
Mas, já que cheguei até aqui,
tenho um longo caminho a correr.
Tenho tanto para ver...
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3. |
Trágico comediante
02:57
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Silêncio atrai silêncio.
Atroz é o silêncio
quando aí ouvimos a nossa voz.
Violência atrai violência.
Trago a consciência entorpecida
por tanta coisa que dói.
O que eu não fiz não quero ver,
o que eu não quis não quero ter.
O que eu não dava pra sair
deste marasmo em que me afogo.
Incêndio atrás de incêndio
salvo sempre o mesmo
para não duvidar do coração;
pra ter noção do chão —
são filhos de outras lutas, já vencidas,
que me inspiram a ambição.
O que eu não quis preciso ter,
o que eu não fiz vou ter de fazer.
Afinal não posso esperar
mais um minuto, este minuto sequer,
se quero viver sem depender
daquilo que Deus quer.
Domesticada a mente
ponho-me ao corrente:
tudo passa se os passos se dão em frente.
E, consequentemente,
esbracejo exasperado entre o passado,
o futuro e o presente.
Se ainda não fiz nunca hei-de fazer,
se isto não entendo nada hei-de entender.
O que eu não dava pra ter paz...
O que eu não dava pra deixar de doer.
Dou tempo ao tempo,
o tempo nada me dá em troca,
aliás, pede-me sempre mais tempo.
Só mais um mês, aguento,
invento novas vidas, novas ruas
onde esquecer o tormento.
Depois daí fico à mercê
não sei de quem, não sei de quê.
Depois daí é o que for.
Volto pra dentro,
que é onde estou melhor,
e vou desfiando o meu rosário de rancor.
Vejo-me um trágico comediante
a rir-se à sobremesa no restaurante.
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4. |
Se acabou, acabou
03:09
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Se é isso que precisas,
então está decidido.
Não vou mentir.
Mentir não sara um coração ferido
e eu não consigo dar mais do que o que sou.
Talvez que com o tempo
isto ganhasse algum sentido.
Não vou mentir.
Carinho não é amor garantido
mas é exactamente aquilo que sobrou.
Se é isso que persegues,
então está resolvido.
Só não me peças que fique hoje
aqui a dormir contigo —
não me parece que haja algum motivo.
Se queres ter as certezas
que te traz a despedida,
então adeus,
eu já me considero despedido.
Não foi hoje que isto acabou.
Se acabou, acabou.
Eu já cá não estou.
Se acabou, acabou.
Eu não posso ficar cá
agarrado àquilo que outra vez falhou.
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5. |
Um dia não são dias não
04:43
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Como que morto prò mundo
expiro num sono profundo
enterrado no colchão,
quando a minha mulher me chama
e me faz saltar da cama
pergunta "Sabes que horas são?
É que eu já estou atrasada
e a bebé está acordada
a precisar de atenção."
Mudo a fralda à bebé
ainda a dormir em pé
a tactear na escuridão;
tento combinar-lhe a roupa
antes de lhe dar a sopa
(é essa a indicação).
Entrego a bebé à avó
pra conseguir ficar só enquanto
elas vão dar a volta ao quarteirão.
Aproveito assim que posso
pra aquecer o meu almoço,
um resto de arroz de feijão
que vou comer para o sofá a
amaldiçoar a manhã e o amanhã
deitado em frente à televisão.
Diz-se "um dia não são dias",
mas às vezes é esta a frustração:
a de saber que quando são
um dia não são dias não.
Passo o dia em pijama
pronto pra voltar prà cama,
a curtir a depressão.
Tenho um emprego precário,
um part-time temporário,
um biscate que arranjei no fim do verão;
mas hoje é o meu dia de folga:
é o dia que mais me empolga,
é uma verdadeira vocação.
Também já fui avisado que
no fim do mês vou ser dispensado —
a crise é a justificação.
Então, em vez de proletário a fingir
volto a ser o que sempre fui:
um burguês falido; volto a
ser o meu próprio patrão,
a magicar o dia inteiro
mil maneiras de conseguir ter dinheiro
sem cravar a mulher, a mãe e o irmão.
Diz-se "um dia não são dias",
mas às vezes é esta a frustração:
a de saber que quando são
um dia não são dias não.
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6. |
Refrão-canção
02:43
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Vamos repetir até à exaustão
este estúpido refrão,
até que justifique uma canção.
Vamos repetir: vamos repetir.
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7. |
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Em tempos fui feliz.
Em tempos fui
um rapaz tão afável.
Em tempos fui —
mas isso foi antes
de descrer de tudo.
(Foi muito antes
de descrer
de tudo.)
Em tempos foi feliz.
Em tempos foi
uma rapariga adorável.
Em tempos foi —
mas isso foi antes
de desistir de si.
(Foi muito antes
de desistir
de si.)
Em tempos fomos felizes.
Em tempos fomos
criaturas tão prestáveis.
Em tempos fomos —
mas isso foi antes
de sairmos ao mundo.
(Foi muito antes
de sairmos
ao mundo.)
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8. |
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Não olhes para trás,
aceita como um homem
aquilo que fizeste ontem
quando ainda eras rapaz.
"Está tudo mal."
Está tudo mal
mas isso é normal,
estar tudo mal.
Não olhes para nós,
só queremos ter a vida
bem concreta e definida
como os nossos avós,
o que é normal.
Isso é normal.
É o mais natural, não
encontras aqui nada de especial.
Não te queiras assim
agarrado à tua palavra.
Não vês que ela sempre
acaba escrava do seu fim?
E isso está mal.
Está mesmo mal.
Até soa mal.
E fica-te tão mal.
Não te armes agora
em salvador da família
por perder noites em vigília
com as tripas todas de fora.
Porque isso faz mal.
Faz muito mal.
Não vês que faz mal?
Só te faz mal.
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9. |
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Cala-te e come,
tu não precisas
indagar a direcção.
Cala-te e come,
tu não tens necessidade
de reter tanta informação.
Cala-te e come,
já não és novo,
vê se prestas atenção.
Mas acalma-te e come
que não tens ainda idade
para morrer do coração.
Cala-te e come,
passaste ao largo
da tua revolução.
Cala-te e come,
há muito que chegaste
a essa conclusão — ou não.
Cala-te e come,
e limpa-te ao guardanapo que é
essa velha frustração.
Mas acalma-te e come,
foste capaz de tomar
a tua própria indecisão.
Cala-te e come,
senta-te, e entretanto
liga a televisão.
Cala-te e come,
corre os canais à procura
de distracção.
Cala-te e come,
que a angústia vem sempre
que persegues acção.
Mas acalma-te e come,
assim prostrado nem dás conta
dessa estúpida aflição.
Cala-te e come,
comer e calar é mais
que uma obrigação.
Cala-te e come,
esse menu é a
derradeira refeição.
Cala-te e come, agradece,
será que não te deram
nenhuma educação?
Homem, acalma-te e come,
não te canses, guarda para ti
a tua inútil opinião.
Cala-te e come,
come-te e cala,
cala-te e come.
Cala-te e come,
tu não precisas
indagar a direcção.
Cala-te e come,
tu não tens necessidade
de reter tanta informação.
Cala-te e come,
tu não precisas
passar fome.
Cala-te e come,
deita-te e dorme.
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10. |
Como foi?
01:57
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Como foi,
como acabou —
afinal o que é que o medo
não deixou?
Do que fiz,
o que sobrou?
(O tempo mostra-me só
o que matou.)
Quem me fez,
quem me enganou,
ao menos que me explique agora
o que sou.
Quem me fez,
quem me mudou,
ao menos que me diga agora
onde estou.
Como foi,
como acabou?
(Haja alguém que me explique agora
onde estou.)
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11. |
Vistas bem as coisas…
04:11
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Vistas bem as coisas,
nunca estive tão bem:
trago as ideias claras
às minhas custas.
Não me venhas com coisas,
em que é que se sustém
a tua teoria de que a culpa é de quem
não vê que o que passou, passou?
Vistas bem as coisas,
é pior com que sem
(são tantos os detalhes
que a mim me escapam).
Eu sinto sempre culpa
por não fazer o bem,
por querer fazer sentir a culpa
a quem efectivamente a tem.
Dorme bem,
que eu durmo bem...
Durmam bem,
que eu durmo bem.
Vistas bem as coisas,
eu nunca encaixei bem
todos estes equívocos
episódicos
que a mim me dão vontade
de te rasgar os sonhos, e mostrar
que aquilo que precisas
é sentir-me dentro de ti.
Dorme bem,
meu bem, dorme bem...
Dorme bem,
eu só quero o teu bem.
Vistas bem as coisas
nunca estive tão bem:
por muito que me custe
está tudo claro.
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12. |
Aconteceres-te
03:55
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|||
Vês o que eu vejo?
(ainda respiro)
Por onde andei,
por onde sigo?
Pus meus pés
em chão que não sentia
e hoje nem me lembro mais
o que queria.
Vês o que tenho
(e porque vivo)?
Leva uma vida,
mas eu consigo:
andar, andar,
e nunca parar.
(Parar é duvidar,
e eu já não duvido.)
Já sinto o peito,
já me distingo.
Já sou um homem,
já estou comigo.
E rir como antes,
como quando ria,
é só o que falta
mas agora já vai de mim.
Tu não tens nada a ver,
já não tens nada a ver.
Tu escolheste
e não foi por aqui
que vieste,
sobrei muito mais que aquilo
que não quiseste.
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